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“Raças não existem. Trata-se de um conceito inventado” – Zero Hora – 07/07/2017

Por: Vitor Data: 17/05/2020

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*Reprodução da reportagem relacionada do Dr. Sérgio Pena, publicada no Site Vida e Estilo (Portal Zero Hora), em 07 de julho de 2017. (Acesse o link original)

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“Raças não existem. Trata-se de um conceito inventado”, garante o geneticista Sérgio Pena

Em entrevista, médico afirma que não faz sentido dividir as pessoas pela cor da pele e compartilha as descobertas de sua pesquisa sobre as raízes do povo brasileiro, que possui a maior diversidade genética do mundoPor: Luiza Piffero07/07/2017 – 13h00min | Atualizada em 07/07/2017 – 13h38min
"Raças não existem. Trata-se de um conceito inventado", garante o geneticista Sérgio Pena Omar Freitas/Agencia RBSFoto: Omar Freitas / Agencia RBS  

A partir de testes de DNA, Sérgio Pena se dedica a desvendar as origens do povo brasileiro – que, segundo ele, é o mais diverso do mundo. Ao longo de 25 anos de pesquisa, ele constatou que a população do país é, ao mesmo tempo, ameríndia, europeia e africana.

No fim de maio, o médico mineiro de 69 anos esteve em Porto Alegre para realizar uma palestra como parte da programação que antecede a 11ª Bienal do Mercosul, marcada para 2018. O tema da megaexposição é O Triângulo do Atlântico – uma referência às conexões econômicas, políticas e culturais estabelecidas entre África, América e Europa a partir do tráfico de escravos e das migrações, que acabaram configurando o brasileiro. 

O universo da arte não é estranho a Pena, que coleciona trabalhos de artistas contemporâneos e participou da 4ª Bienal do Mercosul, em 2003, como supervisor de uma instalação do artista Ary Perez (um mapa montado com base nas análises de DNA de todos os artistas e agentes participantes da exposição para revelar a ascendência genética de cada um).

– Para mim, arte e ciência são maneiras complementares da humanidade tentar obter respostas para as suas questões mais básicas: de onde viemos, quem somos e o que estamos fazendo aqui – diz Pena.

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Segundo o especialista, todos os brasileiros carregam em seu DNA uma proporção singular de ancestralidade europeia, ameríndia e africana. Seu estudo também concluiu que a cor da pele, dos olhos ou do cabelo tem pouca relação com a ancestralidade. Ou seja, não faz sentido dividir as pessoas entre afrodescendentes e eurodescendentes, população branca e negra, pois a conformação humana é muito mais complexa do que isso.

Formado em medicina pela Universidade Federal de Minas Gerais, Pena fez residência em pediatria e genética médica nos EUA e no Canadá, onde concluiu seu doutorado – o estágio de pós-doutorado ele fez no Instituto Nacional para a Pesquisa Médica (NIMR), em Londres. Em seu retorno ao Brasil, em 1982, após 11 anos vivendo no Exterior, fundou o Gene – Núcleo de Genética Médica de Minas Gerais, que obteve sucesso com a implantação pioneira de testes de paternidade por DNA no Brasil.

Em que estágio se encontra a pesquisa sobre genética no Brasil?
Sempre tem alguma área que se sobressai. Por exemplo: na área de erros inatos de metabolismo, o grupo de Hospital de Clínicas de Porto Alegre é o mais expoente no Brasil. Agora, se você pegar os expoentes de cada área e uni-los, vai perceber que, apesar de o Brasil ter pesquisas consistentes, ainda tem uma média muito fraca. Fazer pesquisa no Brasil implica altos e baixos, como uma montanha-russa. Com alguns governos, o apoio financeiro do CNPq foi bom; com outros, foi escasso. Estamos agora vivendo um péssimo momento: o país está em crise financeira, política e ética, e a ciência não está sendo priorizada nem prestigiada pelo governo. O que precisamos é fazer o apoio à pesquisa científica uma prioridade de Estado, independentemente de quem estiver no governo. Afinal, pesquisa é investimento! O argentino Bernardo Houssay, Prêmio Nobel de Medicina, dizia que a Argentina era pobre demais para se dar ao luxo de não fazer pesquisa. O Brasil também!

O senhor pode falar um pouco sobre o que está pesquisando no momento?
Estamos fazendo mapeamentos genômicos completos de pessoas para diagnosticar doenças. Um exemplo: você tem uma criança que tem convulsões que interferem no seu desenvolvimento. Ok, mas além de tudo ela pode ter um problema neurológico. Conhecemos pelo menos 200 genes que podem causar esse quadro. Para um clínico, esses genes todos são iguais. Mas, por meio da genética, descobrimos qual é especificamente o gene afetado e, assim, podemos encontrar o melhor tratamento. As famílias entram quase numa via sacra, de consultório em consultório, tentando arranjar um diagnóstico, que às vezes se arrasta por anos. Com essa metodologia nova, essa odisseia termina.

Vocês estão priorizando tratamento para crianças ou esse foi apenas um exemplo?
Também temos trabalhado muito com adultos. Às vezes os adultos ficam dementes com 50, 60 anos – é o que a gente chama de demência precoce. Clinicamente, esses diagnósticos são todos parecidos uns com os outros. Mas boa parte deles, e de todas as doenças genéticas, manifesta-se já na infância.

O trabalho de diagnóstico por meio da genética constitui uma área com estudos ainda incipientes no Brasil?
Sim. Nós (o núcleo Gene) somos pioneiros no Brasil. Os primeiros estudos com essa metodologia foram publicados entre 2009 e 2010 no mundo inteiro. Então é uma coisa bem nova mesmo.

Como foi feito o sequenciamento diagnóstico do genoma total em 2016?
A quantidade de informação que há no genoma humano é enorme. Se fôssemos datilografá-lo em papel, chegaríamos a uma pilha maior do que um edifício de 20 andares. Procurar um gene defeituoso no meio disso tudo é um processo… Usamos técnicas bioinformáticas de computação, porque isso seria impossível de ser feito à mão.

O que, segundo seus estudos, fez do Brasil o país mais diverso do mundo?
O povo brasileiro se originou da mistura gênica de povos originados de três dos “velhos” continentes da terra: a Ásia, através dos ameríndios, a Europa, dos colonizadores, e a África, dos escravos. O Brasil foi gerado pela mistura desses três grupos, enquanto outros países, como Paraguai e Bolívia, ficaram restritos a dois deles, ameríndios e europeus, porque não tiveram tráfico de escravos tão forte.

Quais povos compõem a mistura do povo gaúcho e em que proporções? De onde eram os escravos que vieram para o Rio Grande do Sul?
Nossa pesquisa, feita em colaboração com a geneticista Maria Cátira Bortolini, da UFRGS, tem obtido excelentes resultados sobre as raízes ancestrais dos gaúchos. Os dados obtidos pelo grupo dela mostram que os escravos africanos levados para o Rio Grande do Sul eram 71% da África Central (Angola e Congo), 25,4% da região sudeste daquele continente (Moçambique) e 3,6% da África Ocidental. Em média, os autodenominados brancos, no Estado, têm uma ancestralidade preponderantemente europeia (82,4%), mas também têm ancestralidade africana (8,9%) e ameríndia (8,7%).

É possível estimar o que acontecerá com a população brasileira no futuro? A diversidade genética será cada vez maior?
Não. Aparentemente, chegaram ao fim os grandes movimentos de imigração ao Brasil. Agora, as cartas já estão postas na mesa. Só nos resta embaralhá-las repetidamente no futuro, aumentando progressivamente a diversidade genômica individual.

É obviamente difícil resumir uma pesquisa de 25 anos em uma resposta, mas o senhor pode revelar a principal conclusão do seu estudo sobre a origem do povo brasileiro?
A principal conclusão do meu trabalho é: a única maneira de conceitualizar a enorme diversidade genética da humanidade é considerar que todas as mais de 7 bilhões de pessoas que vivem no mundo são únicas em seus genomas e histórias de vidas. Qualquer tentativa de dividir essa diversidade com base na formulação de “raças” ou em critérios de geografia, cor da pele ou religião estará destinada ao fracasso. Somos todos parentes e todos diferentes.

Como foi o caminho percorrido até chegar a essa conclusão?
Pegamos a variabilidade genética da população atual e a usamos como uma espécie de máquina do tempo para ver como as populações que deram origem a essa população se diferenciaram. A conclusão comum a todos os grupos que fazem esse tipo de pesquisa é que a variabilidade genética humana está muito mais dentro de cada população do que na relação entre as diversas populações. Isso quer dizer que, se você tiver um holocausto nuclear e o mundo inteiro desaparecer, exceto uma cidade – que pode ser qualquer uma, Porto Alegre ou Belo Horizonte, ou até uma cidade menor, como Caxias do Sul –, mais de 85% da variabilidade genética da humanidade será mantida. A variabilidade em nível individual é enorme. É mais importante do que a variabilidade entre Porto Alegre e Belo Horizonte, Nairóbi e Pequim. Isso quer dizer que eu, do ponto de vista genético, sou tão diferente de você quanto de uma pessoa que mora na Europa ou na África. Não existe essa questão de raças. Por baixo da pele, todo mundo é igualmente diferente.

Então a palavra “raça” é obsoleta?
Nosso trabalho e o de muitos outros têm mostrado que raças humanas não existem como entidades biológicas. As raças humanas foram inventadas a partir do início do século 16 para justificar o tráfico e a exploração dos escravos africanos. Assim, elas não passam de construções sociais, financeiramente oportunistas. Acredito que, ao mostrar a inexistência das raças, a ciência tem um papel informativo e liberador para a sociedade, afastando preconceitos.

Quando se divide a sociedade pela cor da pele, como faz o censo do IBGE, por exemplo, valorizam-se características irrelevantes?
Este é um ponto crucial. Estamos dando muito valor para coisas pouco importantes, porque os genes que controlam a cor da pele são uns 10 ou 20, e nós temos 20 mil genes. Esses 10 ou 20 não têm nada a ver com capacidade intelectual ou física. A única coisa que determinam é a cor da pele. É a diferença entre comprar um carro branco ou vermelho. Que diferença faz? O carro é o mesmo. Só muda a cor.

Mas, ainda que não exista raça, existe o racismo.
Há dois níveis. Um é o racialismo: a pessoa acredita que raças existem, mas não associa valores a elas. O outro é o racista, que não só acredita que as raças existem, mas que algumas são superiores. Na população como um todo há a questão do racialismo, que é algo nefasto porque manter o conceito de raça vivo é igual a ter em casa um pitbull: a qualquer hora ele pode te morder. Parece irrelevante acreditar que as raças existem. Até que, de repente, começa a haver uma luta entre elas. E aí se cria um problema. No Brasil, a questão de cotas raciais tem gerado conflito. Se tivessem feito um programa de ações afirmativas com bases mais financeiras e de classes, mais do que de raças, os mesmos objetivos seriam atingidos sem criar ressentimentos.

Seu trabalho revelou uma assimetria sexual na origem do povo brasileiro: a herança paterna é majoritariamente europeia, e a materna é ameríndia ou africana. Isso traz à tona a dimensão generalizada que a violência sexual teve na história do país: muitos homens brancos, os senhores de escravos, por exemplo, tiveram filhos com negras e índias.
Realmente, esse não era um ponto enfatizado anteriormente ao nosso trabalho. Temos de lembrar aqui que os conceitos de abuso e opressão sexual têm evoluído ao longo do tempo. Hoje nós estamos muito mais sensíveis a eles. 

O senhor pode detalhar essa pesquisa?
Basicamente, quando você estuda os dois componentes do cromossomo Y, que é de herança patrilínia, e o DNA mitocondrial, que é de herança matrilínia, você vê que no brasileiro autodenominado branco, de maneira geral, o cromossomo Y é praticamente idêntico ao do europeu e o DNA mitocondrial é uma mistura do europeu, do africano e do ameríndio. Quer dizer que a mistura, no Brasil, ocorreu principalmente dos homens europeus com a mulheres ameríndias e africanas. O nosso grupo foi o primeiro a mostrar isso no Brasil (em 2000), e depois isso foi repetidamente mostrado para praticamente todos os países da América do Sul. Grupos de Argentina, Paraguai, Peru, Bolívia etc. viram a mesma coisa.

A partir do fim do século 19, milhões de imigrantes europeus vieram ao Brasil. Isso mudou o perfil do brasileiro?
As proporções variam conforme a região, mas a maioria do nosso genoma é europeia, porque foi essa a grande onda imigratória mais recente. De fato, ela causou um branqueamento genético no Brasil.

Mas, pelo fato de sermos antes de tudo indígenas pode-se dizer que todo brasileiro tem um pouco de DNA indígena?
Em Minas Gerais, sim. O meu genoma, por exemplo: tenho 8% de africano, 8% de ameríndio e 84% de europeu. O meu DNA mitocondrial é ameríndio, e o meu cromossomo Y é português. Então eu sou um brasileiro bem típico da parte central do país. No Sul muda um pouco porque alguns imigrantes ficaram casando entre si.

É acessível para qualquer pessoa fazer esse mapeamento?
Nós fizemos isso por alguns anos, mas é um trabalho muito grande e dispendioso para o laboratório. As pessoas não estão dispostas a investir tanto dinheiro numa coisa que não vai ter uso palpável, que é quase de uso recreativo. Ultimamente, algumas pessoas quiseram fazer exames para questão das cotas nas universidades.

O senhor diz que a relação entre cor da pele e ancestralidade, no Brasil, é tênue. Isso quer dizer que uma mulher loira pode ser mais africana do que europeia?
Exato. E também não há razão pela qual indivíduos negros têm de ter olhos negros: é perfeitamente possível ter negros de olhos verdes ou azuis. Já fizemos um estudo para a BBC com artistas brasileiros. Verificamos que alguns deles, como o Neguinho da Beija-Flor, têm muita herança europeia. 

É correto dizer que todo e qualquer ser humano na Terra tem componentes africanos no DNA?
A humanidade apareceu na África, então todo ser humano é descendente de um africano. Debaixo da pele nós somos todos africanos. A humanidade teve origem há mais ou menos 200 mil anos e só saiu da África há uns 70 mil anos. Ou seja, passou dois terços da vida na África. Originalmente, toda a humanidade tinha pele escura. Foi só quando os indivíduos migraram para o Norte da Europa, onde o sol é fraco, que houve pressão seletiva genética para branquear a cor da pele. Há várias evidências disso. Uma delas é o fato de que a variabilidade humana é maior dentro da África do que em qualquer outra região. Toda a variabilidade fora da África é um ramo, um capítulo da variabilidade na África.

No Rio Grande do Sul, é comum ver pessoas com uma identificação forte com a origem de antepassados europeus. Isso faz sentido do ponto de vista genético?
Não. Porque a variabilidade individual é mais importante do que as distinções geográficas. Então, mesmo que seja uma pessoa italiana, de terceira ou quarta geração, fruto exclusivamente de casamentos de italianos com italianos, essa pessoa será tão diferente de outra que vive no Estado quanto de alguém que vive na Itália. Esse orgulho nacionalista das pessoas de serem descendentes de italianos ou alemães pode ou não ser valorizado, mas nunca vai ser entendido em termos raciais.

Uma coisa que mexe muito com o imaginário da sociedade é a possibilidade de escolher as características dos filhos antes mesmo de eles nascerem. O que já está sendo feito no mundo e o que poderá ser feito no futuro?
Muito pouco. Você poderia, teoricamente, fazendo estudos genéticos de embriões, escolher talvez a cor do olho, um pouco a cor da pele, algumas coisas mais simples, mas certamente você não conseguiria valorizar a capacidade intelectual, a propensão artística ou a competência esportiva, porque essas são características humanas tão complexas que dependem de um número enorme de genes e de várias contribuições do ambiente que jamais se consegue controlar. A minha visão é de que o bebê de alfaiataria, feito sob medida, jamais vai acontecer. 

O senhor foi o responsável pela introdução dos testes de paternidade por DNA no Brasil. Qual foi o impacto dessa novidade?
Tenho muito orgulho disso. Imagina a situação de uma pobre moça que queria provar que o filho era da pessoa X, o namorado ou caso que ela teve: ela era totalmente incapaz. O que acontecia era que geralmente o acusado de ser o pai levava amigos que diziam que tinham dormido com a moça, que ela era uma moça de vida livre e que dessa maneira ninguém poderia saber quem era o pai da criança. Quer dizer, as pessoas mentiam nos tribunais, e a mulher que entrava na Justiça acabava virando ré. O que ainda acontece nos casos de estupro: a vítima acaba sendo julgada. Foi uma revolução.

Como as pessoas faziam para tentar descobrir quem era o pai antigamente?
Com os testes de grupos sanguíneos, que foram descobertos em 1900. Mas, nesses casos, o teste só era capaz de excluir os possíveis pais, e não de incluir, de determinar a paternidade, mesmo. Antes disso, havia um teste mais antigo, muito predisposto a erros: o da aparecença. Mas esse é uma furada, porque há indivíduos que são sósias e não são parentes.

Quantos testes de paternidade por DNA já foram feitos no Brasil?
Desde 1988, mais de 200 mil, quem sabe 300 mil. O acesso aumentou porque os tribunais têm obtido dinheiro do governo para custear esses testes. 

Quanto custam?
Na faixa de R$ 300 a R$ 800.

Vocês têm o percentual de testes em que o pai acaba não sendo quem se pensava?
Há os testes judiciais e os não judiciais. Geralmente os testes judiciais são das mães que tiveram o bebê e que os pais se recusam a registrar a criança – elas querem o registro e a pensão. Já os testes não judiciais de paternidade, que também são muito comuns, resultam em mais ou menos 50% positivos e 50% negativos. Há pais que querem confirmar a paternidade, mas há várias outras situações verificadas. Um dado que temos é que, hoje, há muita gente sem saber quem é seu pai de verdade, isso não é raro. Provavelmente de 5% a 10% dos filhos não têm o pai que acham que têm. É claro que essa pesquisa é muito difícil de se fazer – como é que vamos fazer essa verificação? Mas houve tentativas de inferir isso de maneira indireta e, em geral, o número fica entre 5% e 10%. O que quer dizer que muita árvore genealógica que as pessoas criam aí não é verdadeira.

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